Instrumento "custom shop", "de luthier" ou "de marca"?

M. De Laet • Sep 29, 2023

Conhecendo os termos técnicos para evitar as "imprecisões" cada vez mais frequentes em denominar instrumentos de alto padrão no Brasil

Nos últimos anos, encontramos inúmeras mensagens em redes sociais de músicos e entusiastas - em sua grande maioria, guitarristas - com dúvidas sobre adquirir um instrumento "de marca" ou um instrumento "de luthier". Nos grupos de discussão do Facebook encontramos várias opiniões acerca do tema, dissertando sobre as vantagens e as desvantagens em cada uma das opções. Não apenas músicos, mas fabricantes e construtores brasileiros que participam destes grupos também acabam difundindo mitos e demonstrando dificuldades em explicar diferenças, muitas vezes confundindo termos relacionados a características do processo de fabricação aplicado com "padrão de qualidade" do instrumento.


O tema ficou ainda mais acalorado com o surgimento de uma nova marca de guitarras Premium, a Hertom Guitars, denominada de forma "imprecisa" como uma "marca custom shop" pela revista Guitarload, possivelmente com a intenção de informar que se trata de uma marca Premium, voltada para o mercado High End, ou, como também denominado, mercado de luxo.

Com isso, surgiram muitas indagações sobre a origem da marca, afirmações equivocadas e críticas em grupos de redes sociais sobre os produtos da Hertom, que nem ao menos foram testados pelos críticos.  Encontramos desde aqueles que reclamam da precificação das guitarras acima de dez mil reais (ignorando suas especificações), até os que buscam fundamentar o seu descrédito por serem "instrumentos asiáticos, que não são instrumentos de luthier/custom shop de verdade", entre outras denominações ainda mais equivocadas.

Para evitar ainda mais imprecisões, basta reconhecer e utilizar os termos técnicos que são utilizados no mercado mundial por profissionais do nosso setor musical, que faz parte da economia criativa.

Fato, são raros os lojistas e ditos "profissionais da música" no Brasil que estão familiarizados com estes termos, mas esta é uma questão social que irá esbarrar em falhas no sistema de educação brasileiro, bem como a falta de qualificação da grande maioria dos profissionais que atuam na economia criativa brasileira, que inclusive, em sua grande maioria, desempenham sua atividade econômica de maneira informal.


Vamos lá?




INSTRUMENTOS DE FÁBRICA


Independente se são "de marca" ("marcas consagradas", voltadas ao segmento premium) ou de entrada, são aqueles instrumentos produzidos em escala. O surgimento destes instrumentos estão intimamente ligados à revolução industrial no século XVIII, onde o intuito era criar mecanismos para produzir mais em um menor intervalo de tempo e, com isso, diminuir custos, seja pelo fato de se conseguir comprar insumos pelo menor preço - com o poder de barganha - ou otimizando os processos, padronizando medidas e sistemas de controle.


A cultura dos "fins justificam os meios" dos instrumentos de fábrica ajudou a expandir o alcance da prática musical, fazendo despencar os preços dos instrumentos musicais, antes limitados aos instrumentos de oficina e de autor. No setor de instrumentos musicais, temos fabricantes que surgiram no século XIX que atuam no mercado até hoje. No Brasil, inclusive, fabricantes como Tranquilo Giannini e Romeu Di Giorgio foram os precursores de nossa indústria no início do século XX.


Estruturalmente, as fabricantes variam bastante, seja em termos organizacionais como em processos. Quanto aos processos, são tantos que enumerá-los seria algo digno de uma dissertação de mestrado. Entretanto, para ajudar na compreensão, podemos dizer que a maioria das fabricantes do setor apostam no modelo "fabless", ou "fábrica sem fábrica", onde temos o desenvolvimento dos instrumentos musicais produzidos pela empresa enquanto a produção é realizada em uma fábrica terceirizada (geralmente na Ásia).


Além dele, algumas gigantes como Gibson e Fender (que são o foco de nosso artigo, por pertencerem ao "mercado de luxo") apostam em um modelo "híbrido", onde possuem plantas próprias para produzir instrumentos com alto valor agregado, enquanto instrumentos de entrada serão produzidos por empresas terceirizadas.

Independente qual seja o modelo de produção, o foco é produzir em escala, garantindo um padrão alinhado aos anseios dos diversos públicos atendidos pelas diversas linhas (do baixo custo ao mercado de luxo), diminuindo custos e maximizando lucros.


PONTOS POSITIVOS


Produção padronizada: todos os instrumentos seguem rigorosamente os padrões estabelecidos pela direção de produção, independente qual seja a linha.

Acessibilidade: Os preços podem ser salgados para muitas linhas (para quem está acostumado a instrumentos de entrada e intermediários). No entanto, os instrumentos de fábrica  possuem boa distribuição e podem ser encontrados em praticamente todas as partes do mundo, sendo distribuídos em lojas do setor, marketplaces, entre outros pontos de venda.

Reconhecimento do grande público: mesmo quem não é músico reconhece as grandes marcas do setor. Possuem bons departamentos de marketing e, via de regra, se preocupam em realizar uma boa gestão de marca. Isso quer dizer que, se você consome instrumento musical como um veículo popular, onde o "valor de revenda" pesa muito na escolha, este é o perfil ideal de instrumento, justamente pela facilidade de reconhecimento da marca por um grande público!

Manutenção: instrumentos de fábrica possuem processos de produção simplificados (afinal, para produzir muito, é fundamental que seja um processo rápido e simples, não é mesmo?). Isso quer dizer que, por seguirem sempre com um padrão de produção, mesmo que as fabricantes não compartilhem um detalhe ou outro devido aos "diferenciais" que desejam atribuir para as suas linhas, terão mais pontos em comum do que diferenças. Quer exemplos? Dimensões padrão de mercado para escalas, distanciamento de tarraxas, tamanho dos trastes, funcionamento de tensores, dimensões de rastilho, cavaletes, captadores, tipos de conexões, entre outras coisas. Aliás, uma das características mais marcantes em instrumentos de fábrica é o uso de verniz PU. Fácil aplicação, seca rápido e garante um acabamento uniforme. Existe também aqueles instrumentos de corpo sólido que utilizam nitrocelulose, que, apesar de não ter as características valorizadas para a "produção toque de caixa", é um processo também bastante difundido, o que garante uma maior facilidade em encontrar profissionais qualificados para manutenção.


PONTOS NEGATIVOS


Falta de flexibilidade: sabe aquele ditado "em time que está ganhando não se mexe"? É o "mantra" de praticamente todas as fabricantes no mundo. Os fabricantes evitam alterar projetos, planejamentos, programações, especificações de produtos, formas de distribuição e qualquer outra característica do negócio, pois toda mudança gera um custo (e, no caso de empresas gigantes, os custos serão proporcionais). É por essa razão que as marcas consagradas sempre apresentam o seu produto "repaginado", o "facelift", e seguem deste modo enquanto o número das vendas seguirem dentro de um valor que mantenha o ponto de equilíbrio entre a margem de lucro desejada e os custos necessários para produção.

Furtos e Roubos: Independente se são de fábrica ou não, instrumentos musicais também são alvos de furtos e roubos, infelizmente. Os instrumentos de fábrica, apesar de alguns terem números de série, são os mais fáceis de serem repassados adiante e de não serem reconhecidos. Os instrumentos elétricos inclusive possuem o agravante de terem a possibilidade de serem desmontados e terem suas peças vendidas separadamente pelos bandidos. Como o seu ambiente é o "lugar comum", presente nos mais diversos lugares devido a sua produção de larga escala, o instrumento pode facilmente "desaparecer no meio da multidão", receber nova roupagem e seguir rumo por outros palcos.



Para quem se destina?


Os instrumentos de fábrica estão em todos os lugares, literalmente! Seus instrumentos de entrada são perfeitos para as escolas de música e estudantes das mais variadas idades, assim como para os adeptos tocadores de finais de semana que não desejam investir muito. Já, os modelos voltados ao segmento premium são destinados aos músicos profissionais para os mais variados trabalhos, de palco ou estúdio e, também, aos entusiastas que desejam tocar em churrascos e festas de famíia sem abrir mão do estilo.



INSTRUMENTOS DE OFICINA


Quem nunca se deparou com um anúncio com o título "GUITARRA DE LUTHIER" nas mais diversas plataformas e grupos de discussão voltados para guitarristas? Em sua grande maioria, estes instrumentos são "DE OFICINA", construídos por uma oficina (ou ateliê), também chamadas de Workshop (como são denominadas as oficinas em inglês) ou Custom Shop (quando são especializadas em instrumentos personalizados).


Instrumentos de oficina são aqueles construídos por uma equipe composta por um mestre luthier (ou masterbuilder) e seus assistentes, que irão construir instrumentos musicais sob encomenda ou em pequena escala. Aqui os "fins justificam os meios" também, mas, diferente de uma fábrica, onde o foco principal está em diminuir custos e maximizar lucros, as oficinas produzem em um volume menor com o intuito de garantir um padrão de qualidade elevado em todos os instrumentos. Isso quer dizer que todo o processo de construção é mais lento que uma fábrica, pois haverá mecanismos para certificar a qualidade em cada etapa do processo.


Com os avanços da tecnologia, o segmento de instrumentos de oficina foi o que mais cresceu. Isso porque, além daqueles que apostam na fabricação utilizando equipes de funcionários treinados, surgiram empreendedores que apostaram na adoção de ferramentas autônomas, como uma CNC, seja pela praticidade de conseguir diminuir a quantidade de colaboradores (apenas um operador é necessário para monitorar e seguir com as etapas de cada processo realizado pela máquina) ou pela dificuldade de se conseguir mão de obra qualificada para o serviço ou até mesmo treiná-la. O processo, de certo modo, segue o mesmo para ambos os casos, sempre com um mestre luthier "orientando" o trabalho a ser feito (no caso, uma máquina).


A máquina, assim como o grupo de luthiers orientado pelo masterbuilder em uma oficina "tradicional", irá realizar a usinagem das peças com cortes, rebaixos, furos, etc. Em suma, o trabalho pesado, poderá ser realizado por um artesão assistente (ou vários, dependendo do volume de produção) ou por uma máquina autônoma; em vez de uma mão humana empunhando a tupia/router, teremos uma máquina com pelo menos três eixos lineares movimentando a ferramenta.


Deste modo, se temos um luthier com uma equipe auxiliando na construção, ou um luthier utilizando uma máquina CNC para construir instrumentos, estamos tratando de um instrumento de oficina. Podemos verificar nas redes sociais uma discussão sem fim sobre a qualidade dos instrumentos handmade comparados aos instrumentos produzidos em CNC. Fato é que, independente da adoção de uma equipe qualificada ou uma máquina autônoma, a garantia de qualidade não estará relacionada ao processo adotado, mas ao padrão de qualidade e os processos de certificação aplicados em cada etapa do processo estabelecidos pelo fabricante.


Vale destacar:


Grandes fabricantes possuem "linhas" denominadas como "CustomShop", entre outros, com o intuito de "vender" a promessa de um instrumento construído com o "espírito" de um instrumento de ateliê/oficina. De fato, trata-se de setores da empresa com equipes qualificadas para atender um seleto grupo de clientes que podem, de certo modo, solicitar algumas customizações. Grosso modo, é o mesmo que afirmar que uma linha denominada "gourmet" de um grande frigorífico possui o mesmo padrão de qualidade de um restaurante de alta gastronomia. Pode até possuir alto padrão de fato, mas a sua qualidade estará intimamente ligada aos processos adotados (no caso de uma "linha gourmet", quanto mais próximo aos de um restaurante de alto padrão, melhor) do que ao seu nome de batismo.


Também é possível ter instrumentos de oficina produzidos no formato OEM (produção terceirizada), onde os instrumentos serão produzidos por um ateliê seguindo rigorosamente as instruções da pessoa responsável, que pode ser um mestre luthier ou representante de uma marca específica. Geralmente esta opção é escolhida com o intuito de aumentar a presença de marca ou evitar investimentos em maquinário e recursos humanos. No Brasil existem muitos exemplos bem sucedidos de empresas que apostaram neste formato de negócio, em especial com instrumentos de cordas friccionadas (violinos, violas, cellos) construídos por boas oficinas chinesas e, mais recentemente, a Hertom Guitars da ProShows, com instrumentos de alto padrão produzidos na Ásia e que conta com o suporte de renomados luthiers brasileiros, como João Cassias e Ivan Freitas.


PONTOS POSITIVOS


Produção padronizada: assim como os instrumentos de fábrica, todos os produtos fabricados seguem rigorosamente os padrões estabelecidos pela direção de produção, incorporada pela figura do mestre luthier, ou masterbuilder.

Flexibilidade/ Possibilidade de customização: por serem produzidos em menor escala, muitas oficinas (as customshops) oferecem a clientes a possibilidade de encomendar instrumentos com configurações de acordo com o seu desejo pessoal, desde a escolha de acessórios até a pintura do instrumento. Também é comum encontrar customshops que desenvolvem projetos exclusivos para clientes, com contratos de exclusividade para o projeto específico, evitando assim que o mesmo seja replicado para outro cliente.

Controle de qualidade: como principal diferencial, as oficinas, via de regra, apostam em um controle de qualidade rigoroso em todas as etapas de fabricação. Cada etapa do processo é acompanhada pelo masterbuilder ou por um luthier encarregado por ele para desempenhar o controle de qualidade com o intuito de manter um padrão elevado e evitar retrabalhos.

Manutenção:  assim como os instrumentos de fábrica, possuem processos de produção simplificados e acessórios que seguem medidas padronizadas do mercado. Fato, existem aquelas oficinas (CustomShops) que optam por seguir na contramão, propondo soluções diferentes do mercado, mas são raros os casos que dificultam o trabalho de manutenção dos instrumentos.


PONTOS NEGATIVOS


Reconhecimento do grande público: diferente dos instrumentos de fábrica, instrumentos de oficina não são facilmente reconhecíveis pelo grande público. Isso quer dizer que a maior parte do seu reconhecimento está relacionado a um mercado de nicho, o que pode resultar em dificuldades no momento da revenda dos instrumentos. É fundamental ter consciência de que se trata de um produto voltado ao mercado de nicho e saber muito bem qual é o seu público consumidor.

Acessibilidade: Instrumentos de oficina são raros de encontrar em lojas. São encontrados em lojas especializadas no comércio de instrumentos premium ou usados, assim como nos show rooms das próprias oficinas.


Para quem se destina?


Geralmente os instrumentos de oficina são buscados por músicos que desejam um instrumento personalizado, seja em termos estéticos ou características sonoras. No Brasil, por uma característica mercadológica e cultural do segmento guitarrístico, também são bastante procurados por músicos que buscam uma alternativa a instrumentos de linhas "Premium" de marcas consagradas (Deluxe, CustomShop e afins).

Não raramente são solicitadas especificações de hardware idêntico aos instrumentos "objeto de desejo" com opções de "madeiras alternativas" ao utilizado no modelo original. Também atendem muito bem músicos amadores que desejam características específicas não encontradas em instrumentos de fábricas.

Para os músicos eruditos e da música instrumental, os instrumentos de oficina geralmente são uma opção com boa relação custo-benefício e/ou um passo anterior ao investimento de adquirir um instrumento de autor.


INSTRUMENTOS DE AUTOR


Este instrumento se difere em sua essência dos anteriores: se os instrumentos de fábrica e de oficina compartilham a filosofia de que "os fins justificam os meios" (seja com a adoção de mecanismos de produzir mais em menos tempo e/ou adotando padrões de qualidade e tecnologia para auxiliar no aumento da produção sem perder o controle e precisão dos processos), o instrumento de autor nasce da crença de que "os meios justificam os fins" e, por isso, são construídos do início ao fim por um único luthier. É evidente que o instrumento pode ser regulado por outro luthier, receber acessórios, entre outros serviços por outro artesão. No entanto, o aspecto construtivo é realizado apenas por um único artesão.


É por essa razão que estes instrumentos carregam características singulares de cada construtor, sua assinatura artística.


Aliás, é importante não confundirmos instrumentos de autor com projetos autorais. Afinal, temos inúmeros exemplos de instrumentos com desenho autoral nascidos nas fábricas, sendo o maior deles a guitarra Stratocaster da Fender. Basta ver uma strato, independente da marca que ostenta em seu headstock, que você irá se lembrar da marca original e de seu criador, Leo Fender. O fato dele ser "autor" do lendário design, o "empreendedor" Leo Fender nunca foi (e acredito que nunca teve a intenção de ser) um "luthier autor." Tudo em seu projeto foi pensado para facilitar a produção em larga escala, um dos grandes trunfos que explica o sucesso comercial da marca que a levou a se tornar uma das maiores referências na indústria de instrumentos musicais mundial.


Seguindo na contramão de Leo Fender, um luthier autor trabalha sozinho. O objetivo não é produzir mais para diminuir custos, nem mesmo investir em maquinário para auxiliá-lo a "produzir de forma rápida e precisa". Pelo contrário, a precisão é aprimorada constantemente com a prática de técnicas de entalhe. Em vez de seguir processos padronizados para garantir uma "qualidade padrão", o luthier autor faz uma leitura individualizada do lenho que será utilizado, observando características estéticas da venatura, bem como suas características de elasticidade e resistência.


Assim, cada instrumento exigirá um processo diferente do outro, tornando o trabalho mais complexo e o resultado final único, sempre focado em extrair todas as qualidades do material - que, via de regra, possui um rigor de seleção muito acima de instrumentos de oficina e de fábrica, pois o luthier autor, diferente dos fabricantes em escala, não possui poder de barganha na aquisição de matéria-prima, o que torna menos atrativo trabalhar com madeiras de graduação baixas e médias, por exemplo.


Como "os meios justificam os fins", os instrumentos de autor exigem elevado nível técnico do artesão, pois as ferramentas utilizadas, obrigatoriamente serão de ferramentas de controle manual, como facas de entalhe, formões, goivas, grosas, serras, raspilhas, etc. Além disso, é importante que o artesão tenha bom domínio de organologia (saber a "história" da origem e evolução dos instrumentos), das características das principais Escolas de Luteria (guitarrerias espanholas, luteria cremonese, entre outras), além de saber princípios da física (em especial acústica), química (preparação de vernizes artesanais) e dendrologia (afinal, a principal matéria-prima é o lenho e, para extrair o máximo do potencial da madeira é fundamental reconhecer as características higroscópicas e o comportamento dos polímeros naturais como lignina e n-celulose).


Podemos encontrar instrumentos de autor com projetos autorais, inspirados em uma escola de construtores específica, ou até mesmo cópias, que exigem do artesão extremo nível técnico para replicar características do autor original, bem como sensibilidade artística para reproduzir detalhes estéticos do instrumento, desde a coloração e formulação de vernizes até características sutis da venatura e os desgastes naturais do instrumento original que serão reproduzidos fielmente. Uma das grandes referências que temos no mundo de cópias é o luthier Luiz Amorim - proprietário do Ateliê Amorim em Cremona, Itália -, especialista na construção de instrumentos Guarneri. As suas cópias podem ser encontrados em torno de 50 mil euros.


Outra característica dos instrumentos de autor é que, como peças artísticas, seus preços variam de acordo com a reputação do construtor, podendo ser encontrados com valores entre 2 mil euros, chegando até a algumas dezenas de milhões de euros, como os instrumentos Stradivari. Deste modo, são os instrumentos mais valiosos de todos os grupos, justamente pela sua raridade (são poucas unidades construídas por ano por um autor) devido ao processo de produção lento. Afinal, são esculpidos "na faca", literalmente.



PONTOS POSITIVOS



Valor artístico: todos os instrumentos construídos por artesãos que escolheram o caminho do processo artesanal possuem valores artísticos imensuráveis e são reflexo do emaranhado cultural que os rodeiam.

Flexibilidade/ Possibilidade de customização: Por serem produzidos um a um e por levar em consideração as características físic0-estéticas e mecânicas de cada lenho utilizado, bem como compreender as necessidades do músico que encomenda a peça, os instrumentos construídos já possuem características de personalização em todas as etapas do processo construtivo.

Controle de qualidade: por ser construído por um único artesão, os instrumentos não correm o risco de falhas na programação ou até mesmo "ruídos" na comunicação com um assistente luthier que compreendeu errado o que foi solicitado. A responsabilidade dos erros e acertos estão nas mãos apenas do artesão, o que anula qualquer interpretação equivocada durante o processo, pois não há intermediários no processo.


PONTOS NEGATIVOS


Tempo de espera: instrumentos de autor são produzidos do início ao fim por um único artesão. Isso quer dizer que, inevitavelmente, caso tenha o interesse em adquirir instrumentos de renomados luthiers, terá que entrar numa fila de espera para encomendá-lo. Isso porque a quantidade de instrumentos construídos por ano é muito pequena se comparada à quantidade produzida mensalmente por uma oficina ou fábrica. Um violino demora, em média, 4 meses para ser construído por um artesão. Instrumentos menos complexos, como o violão ou viola caipira, em torno de um mês. Com o intuito de tornar justa a espera, muitos artesão organizam filas de espera em que os interessados em encomendar um instrumento futuramente deixam os seus nomes e contatos para que sejam avisados quando abrirá uma nova "vaga" para a construção de um novo instrumento. Confirmando o interesse e acertados os valores, o artesão inicia a construção. O tempo de espera pode variar de 6 meses a 10 anos, dependendo da popularidade e da capacidade produtiva do luthier.

Custo elevado: artesãos produzem muito menos que fábricas e oficinas. Isso quer dizer que não possuem nenhum poder de barganha com fornecedores, o que força os luthiers dedicados a instrumentos de autor a selecionar muito bem a matéria-prima a ser utilizada (haja vista que o valor pago será muito mais caro, o que também faz com que os fornecedores privilegiem e separem as melhores peças para as ofertas destinadas aos artesãos) levando no mais alto grau aspectos estéticos, de resistência e resposta sonora. Se a matéria-prima é mais cara, inevitavelmente o custo final será maior quando comparado diretamente aos valores praticados por fábricas e oficinas. No entanto, outro fator acaba elevando ainda mais o valor dos instrumentos de autor: o seu valor artístico! Dependendo da assinatura que o instrumento carrega, o instrumento pode saltar de alguns milhares de reais para algumas dezenas de milhões de euros rapidamente.

Manutenção: por serem instrumentos artesanais "de verdade", são mais difíceis de realizar manutenção, exigindo qualificação do profissional que executará o serviço. O processo de construção de autor é mais complexa quando comparado aos de instrumentos de oficina e de fábrica. O acabamento, via de regra, é realizado com vernizes confeccionados com ingredientes naturais, sejam eles produzidos pelo próprio artesão ou adquiridos por fabricantes artesanais de vernizes. Frequentemente são utilizados vernizes com base a álcool, a óleo ou mista, utilizando uma infinidade de resinas, o que exigirá muita experiência do luthier responsável para identificá-los. Não é raro um reparador inexperiente danificar a pintura de instrumentos de autor em goma laca num simples hábito de passar um pano com álcool numa parte do instrumento, por exemplo. É por essa razão que é exigida na Itália formação específica para reparadores atuarem profissionalmente. Se você não vive na Itália e possui um instrumento de autor, pesquise bem a reputação do reparador que será o responsável pela manutenção do seu instrumento.


Para quem é destinado?


O perfil de quem adquire instrumentos de autor é, em sua maioria, músicos que possuem um trabalho artístico e produzem um som "orgânico". Possuem alto nível técnico e/ou são extremamente exigentes com aspectos estéticos sonoros. Podemos citar Fabio Zanon, Emanuelle Baldini, Alessandro Penezzi, David Garrett, Duo Siqueira Lima, Al Di Meola, Ricardo Herz, Andre Segovia, Pablo Sainz Villegas, Yamandu Costa, entre outros.



VOLTANDO AO "CASO" HERTOM GUITARS


Após a apresentação dos termos, fica claro que a discussão nas redes surgiu pela ignorância (no sentido stricto da palavra). Afinal,

todas as críticas ignoraram o fato da marca estar vinculada a ProShows, uma das principais empresas brasileiras do setor de instrumentos musicais, áudio e acessórios. Também é importante levar em consideração que quem assina o desenvolvimento técnico dos produtos Hertom são João Cassias e Ivan Freitas, dois luthiers brasileiros reconhecidos pelo trabalho excepcional que desempenham com suas respectivas marcas (Cassias e Music Maker). Ou seja, a Hertom Guitars tem tudo para entregar a promessa de alto padrão que estão apresentando.


Aliás, outro fato ignorado nesta discussão é de que TODOS os instrumentos construídos, sejam eles "de marca" ou não, foram feitos por luthiers. Isso significa que todos eles, independentemente qual seja o modelo do processo de fabricação, são "de luthier".

Lembrando, o que originou a enxurrada de críticas foi o fato de utilizarem um termo ligado a um modelo/processo de produção (custom shop) como se fosse um "padrão de qualidade" de produto.

Se houver a possibilidade de os produtos serem customizados pelos consumidores da Hertom Guitars, como a consagrada linha CustomShop da Fender faz, qualquer crítica a respeito de que "não se trata de uma Custom Shop de verdade", cai por terra. Em suma, boa parte das críticas são: por medo de algo novo; por "imprecisões" apresentadas pela imprensa; e/ou falta de conhecimento por parte do público.


Não é novidade para ninguém que, infelizmente, o Brasil possui inúmeros desafios em áreas como educação, cultura e também com a qualificação em diversos setores da economia, incluindo também o setor musical. Não estamos acostumados com a valorização do trabalho (em especial de serviços), temos dificuldade em perceber o valor das coisas, diferenciar produtos e bens de consumo. Isso fica muito evidente quando revisitamos alguns fatos históricos, como o de nosso país ter sido um dos últimos a abolir a escravidão, bem como ter um processo de industrialização tardio; isso sem contar a abertura comercial com a redução das tarifas de importação e reformulação dos incentivos fiscais nos anos de 1990 que tornaram possível a entrada das marcas estrangeiras por aqui.


É importante deixar registrado que a fabricação de instrumentos musicais no Brasil foi bastante impactada com o fenômeno da "abertura dos portos"  na década de 90. Muitas fabricantes locais fecharam suas portas e os empreendedores tiveram que avaliar profundamente a forma como lidavam com o negócio e, principalmente, a qualidade de seus produtos - muito aquém dos instrumentos chineses de baixo custo na época.


Sendo assim, é fácil compreender os motivos do consumidor brasileiro de instrumentos musicais, de forma geral, ter dificuldade em conhecer- e reconhecer, nomear e diferenciar produtos de acordo com o processo - não raramente confundindo a natureza de "processo" com "padrão de qualidade", mas este é um outro tema que poderemos tratar em outra oportunidade.


Fica registrado também que não podemos generalizar, de modo algum. Afinal, músicos - e boa parte de entusiastas - de instrumentos acústicos, sejam eles populares ou eruditos, de cordas dedilhadas ou friccionadas, ou até mesmo de sopro (madeiras ou metais), já estão acostumados com os termos que iremos apresentar a seguir. Possivelmente pelo motivo de muitos deste público terem facilidade de acesso à informação e à educação formal, infelizmente distantes da grande maioria dos músicos e profissionais do setor brasileiro que, em sua grande maioria, possuem formação autodidata ou, na melhor das hipóteses, alicerçada em cursos livres.


O PROCESSO DE PRODUÇÃO COMO ESCOLHA DE UMA VISÃO DE MUNDO:


Enfim, quando conhecemos as denominações de instrumentos de acordo com o processo de produção, podemos constatar que a escolha do modelo de negócio está intimamente ligada à filosofia de quem é o responsável pela atividade econômica de construir instrumentos musicais, suas crenças.

Se enxerga a atividade como manifestação de sua arte, irá seguir o caminho solitário de autor, construindo artesanalmente os seus instrumentos. Se o que norteia o empreendedor é a busca incessante pela qualidade e pela padronização de seus instrumentos, a oficina (ateliers, workshops, custom shops) será a escolha do modelo de negócio. Se o desejo é de expansão constante, de conquistar cada vez mais mercados, ter uma estratégia de reconhecimento de marca e maximizar lucros, certamente o modelo será de produção em larga escala, de fábrica.

Em todos os modelos de negócio e processos de fabricação teremos instrumentos excepcionais, bem como instrumentos ruins, dentro das características de cada um, é claro.

A decisão entre um instrumento de autor, de oficina ou de fábrica não está relacionada apenas ao padrão de qualidade, mas ao perfil de consumo e grau de exigência de quem adquire aquele instrumento. Não é apenas sobre especificação de produto. Nunca foi.

Lembra a decisão entre realizar as compras de alimentos e itens para o lar em pequenos negócios locais ou em grandes redes de mercados, ou predileção por determinadas marcas pelo que significam em sua vida (realização pessoal, confiança ou uma lembrança afetiva, por exemplo).

Cabe ao consumidor decidir qual processo está mais alinhado com a sua música e com a sua filosofia de vida. 

 


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